Médico pela Escola Paulista de Medicina/Unifesp, com mestrado pela Unicamp e doutorado pela FSP/USP. Experiência profissional na área de organização de serviços, planejamento e gestão, epidemiologia e métodos de pesquisa em saúde.
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Questões sobre a saúde e a democracia. Disponibiliza postagens, artigos, publicações e, ainda, vídeoaulas sobre temas da área de saúde pública, com as principais questões sobre a organização do SUS, epidemiologia e gestão em saúde.
[…] se é triste/cômico
ficar sentado na plateia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.
Declaração em juízo – Carlos Drummond de Andrade
Há muito abandonamos a crença na impossibilidade de erro em decisões de uma maioria de pessoas. Defendemos todos nós posições, em maioria ou minoria. Ideias ancoradas nas condições históricas nas quais estamos mergulhados e em nossos valores éticos expressos na nossa prática moral e política cotidiana, naquilo que escolhemos fazer da vida para nós e para todos.
A vida econômico-social, em especial nas últimas décadas, tem inculcado maravilhas do viver dirigido pelo individualismo, para o qual, necessariamente, deve-se negar e ocultar qualquer alternativa de generosidade coletiva. A marca da globalização econômico-financeira tem sido a intensificação da exclusão social. Os mais fracos, os vulneráveis perderam interesse no mundo globalizado onde o que centralmente importa é o consumismo dirigido e incentivado e a intensa acumulação e domínio do capital financeiro.
A busca pela sabedoria na condução prática da vida foi descartada pomposamente, com ares de uma ciência econômico-administrativa, diga-se, submetida ao sistema econômico-social, onde não há desigualdades inaceitáveis e sim vencedores e perdedores. Ganham celebridade valores como o mercado e suas vontades, o ilusório empreendedorismo, a inteligência emocional adequada aos negócios e a fabulosa “coletivização” da expropriação com os propagandeados “times de colaboradores”. No mesmo compasso “colaborativo” vem ocorrendo, também, uma intensa precarização do trabalho assalariado e com crescentes perdas de direitos trabalhistas, subemprego e desemprego, intensificados com as iniciativas toscas de reforma trabalhista. Mas vejam bem, agora toda empresa “atualizada” tem definidas aquelas inutilidades cristalizadas em palavras ao vento sobre missão-valores-visão, de preferência emolduradas num quadro.
As funções públicas de Estado foram trituradas, os servidores públicos concursados orgulhosos da sua opção laborativa desprendida dos valores maiores do sistema econômico, mas com uma histórica contribuição coletiva e que necessitam de regimes de trabalho especiais, são postos na condição de párias, favorecidos, marajás… Não são aqueles com ganhos financeiros extravagantes ou os hábeis sonegadores de impostos ou os detentores de contas bancárias nos paraísos fiscais, são os servidores públicos os taxados de aproveitadores e, assim, alvos maiores da reforma administrativa em curso. Concomitantemente, os gastos com os fundos públicos, dispostos para concretizar alguns direitos sociais conquistados, passam a ser diabolizados e as sobras crescentes raivosamente disputadas por uma elite insaciável. Com uma Emenda Constitucional, vetam-se os gastos diretos com os serviços públicos em prol do bem estar social, tal como as ações desenvolvidas pelo SUS, e liberam-se os gastos com fins de atender a máquina desenfreada do sistema financeiro e suas negociatas especulativas.
Essas são as “reformas” em curso, questões de princípio que interessam ao pensamento e à prática conservadora ─ Estado mínimo, em relação à concretização de direitos sociais e coletivos; privatização como princípio para garantir novos mercados; respeito submisso e religioso aos limites do gasto público para atender as elites na sua voracidade pelos fundos públicos… Deu no que está dando: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, assim é como nossa elite parece se enxergar!
Pensando que ainda podemos perseguir a sabedoria de uma boa vida com uma vida boa, temos que ficar atentos aos comportamentos doentios, refletir sobre nossas decisões, rever, procurar escapar do comportamento e das excitações das hipocrisias sociais. A busca da sabedoria virou inimiga do modus vivendi vitorioso nesta quadra histórica e a vilania nos persegue como um asmodeu que vem das profundezas do autoengano e que falsamente nos libertaria de responsabilidades. O homem livre, liberto de si mesmo e dos demais, um amante da glória e de mitos! Respostas fáceis, recusa em reconhecer erros, amesquinhar o mundo e o viver, nos aprofundam na tragédia até transformá-la em farsa.
A farsa vem em nossos dias – talvez a maior delas vivida no Brasil – quando tragicamente acomodou-se no poder do país um político, há muito reconhecido, com fortes traços de personalidade psicopática (FSP-18/03/2021, Palomba G.). Sem exageros, basta rever suas ideias expostas ao longo da sua participação em inúmeros programas televisivos, durante o período anterior às eleições. E agora em seus atos! Um líder que excita crescente estupidez e ignorância de conservadores presos ao medo do futuro, ao asco à reflexão, ao desprezo pelo saber científico, estimulando ameaças, agressões e o culto do obscurantismo.
Um erro inacreditável da maioria votante, o qual muitos ainda não o reconhecem, ao ter encontrado nesse fulano o caminho para a defesa de seus interesses com a natureza de exclusão da maioria. De fato, o que importou às elites que vestiram o coturno com seu líder foi ampliar seus privilégios, para o que, se necessário for, abandona-se o barco de esgueiro, quando definida alternativa mais palatável.
Com a recusa em admitir as consequências daquela escolha, entrincheiram-se explicando os acontecimentos com a sutileza de um predador da vida social, para quem só interessa a sua própria e de seus parças, resultando, agora na epidemia, na incapacidade em compartilhar atos respeitosos e coletivos na defesa da vida geral. Mergulham com altivez na maldade desmedida. De forma elegante o esgarçamento pessoal, assim possuído ao enxofre, procura amparos; um deles na farsa do elegante biombo de teses negacionistas. Entretanto, os comportamentos genocidas de boa parte da sociedade autoenganada não são, a rigor, decorrentes de nenhum negacionismo. Eles não têm repertório para isso, não se vinculam a formas estruturadas do pensar negacionista, este no limite considerado até como uma crítica articulada, mas equivocada no apontar dos limites da ciência. O tal negacionismo praticado por esses fulanos não é a necessária vigilância crítica do conhecimento. É uma pregação fanática, com base numa estruturação discursiva de bobagens e mentiras.
O tempo nos lança e nos agrega no mundo real. Tal como a renovação virótica, a história carrega e expõe a repetição no tempo de formas aparentemente inexplicáveis, para as quais na farsa, sem fundamento e razão, se avolumam e difundem expressões particulares da ignorância humana, tal como expressas por nosso representante na ONU. Um “triste grotesco”! Havemos de superar!
Paulo de Tarso Puccini,
médico sanitarista,
doutor em saúde pública
2/10/2021
Nada é mais danoso para a vida em sociedade do que o aprofundamento da desigualdade, quando esta atinge seu ápice, chegando ao ponto de abandono intencional dos mais fracos no campo de batalha. A perda da solidariedade, empatia e generosidade rompe qualquer esperança de sentido coletivo e humanitário para a vida. É a instalação final da fuga desordenada e caótica do barco, sem ninguém mais para gritar por responsabilidade social às autoridades e aos políticos.
As declarações do Presidente da Câmara — “Na guerra, vale tudo para salvar vidas” (Valor Econômico, 31/3/2021), justificando um privilégio aos economicamente mais fortes, ao defender a compra e o uso privado de vacinas por empresários para imunizar sua trupe, são abertamente a pregação de um ato criminoso. São declarações obtusas e imorais, além de irem contra a Constituição brasileira e contra lei recentemente aprovada. Tais normas legais estabelecem proibições para tal empreitada, dessa corajosa nobreza em guerra.
A elite e suas autoridades políticas incapazes de comprar a tempo e diante da escassez de vacinas para todos, chegaram a uma conclusão embaraçosa — vamos é comprar para nós… que se danem esses critérios de prioridades das pessoas a serem vacinadas.
É deplorável o que está sendo defendido por uma autoridade nacional.
Sr. Presidente — “vada a bordo, cazzo”, pare com esse embuste, confundindo pretensos argumentos racionais com o verdadeiro enfrentamento da epidemia que exige responsabilidade e seriedade de argumentos e ações.
Fortaleçam-se o SUS e todo o esforço coletivo de gestores estaduais, municipais e dos profissionais de saúde que vem sendo realizado. Assumam todos a sua parte de responsabilidade social para com a defesa da saúde ─ um direito igual e de todos consagrado nas normas da Constituição brasileira (não à toa, nossa Constituição cidadã, de 1988).
Paulo de Tarso Puccini,
médico sanitarista, doutor em saúde pública
31 de março de 2021.
Doria, eleito prefeito de São Paulo, marcou logo de início sua incontrolável vocação para embusteiro – um trabalhador, não um político. Com forte apelo midiático, propagandeou suas primeiras inverdades governamentais.
Com a proposta do “Corujão da Saúde”, Dória afirmava, antes de renunciar ao cargo: “os exames serão realizados em caráter de normalidade, com prazo de 30 dias […]”. Mentiu! A meta não foi atingida. Em maio de 2017, segundo dados de relatório técnico do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, mês que o então prefeito anunciou que zerou a fila, o tempo médio de espera por um exame era de 99 dias. Faltou cuidado e seriedade na elaboração e condução. Mentiu também quando afirmou “a cracolândia não existe mais”; mentiu sobre uma zeladoria que efetivaria uma cidade linda e mentiu a todos e a si mesmo, atuando como um transformista de personagens que significou apenas mais um abuso peralta da demagogia.
O mais grave, entretanto, estava por vir. Agora, no Governo do Estado, acompanhado por seu escudeiro Covas à frente da municipalidade paulistana, produziu-se uma forma teatral e exibicionista no enfrentar da epidemia. Um estilo de show televisivo diário marcou sua grande empreitada de aposta política para aparecer, cavalgando o Coronavírus. Mal agouro! Esses bichinhos são danados! Fases e fases coloridas se sucedem e são confusamente alteradas e descartadas. O mais notável e desastroso dos esquemas de isolamento social foi o malabarismo circense durante o período das festas natalinas (3 dias pode, 3 dias não pode, 3 dias pode) rompendo in totum com a aparente seriedade técnica do colorido das fases, então pirilampando e brincando como um pique-esconde com o Coronavírus.
Os resultados de aumento de casos e óbitos então vieram. Nas últimas 2 semanas de 2020 a média diária de casos novos, no Estado de São Paulo, foi de 7.185 e a média diária de óbitos 146, já nas duas primeiras semanas de 2021, após as festas de fim de ano, as mesmas médias atingiram 9.183 e 185 com incrementos de 27,8% e 26,7%, respectivamente (Fonte: Seade).
Completou essa trajetória a operação para ocultar e contorcer a divulgação dos resultados da vacina Coronavac, a qual foi preparada para ser um troféu político doriano. A maneira confusa, segundo a qual os dados foram apresentados (78%, 100% e depois 50,38%), gerou uma desconfiança desnecessária.
Na sucessão das atitudes governamentais, está por vir a mais significativa frustração, não há um esquema estratégico planejado que garanta a continuidade ou mesmo certa regularidade do processo de vacinação.
Comemoremos sim o início da vacinação, mas sem a excitação de alguns órgãos da imprensa televisiva que desesperadamente estão à procura de salvaguarda da catástrofe política para qual suas ações foram responsáveis decisivas.
Os eventos pregressos nos obrigam total precaução. Não será a vacinação carnavalesca no “Sovaco do Cristo” que irá nos libertar do vírus e dessa plêiade inconfiável de políticos. É uma pena termos governantes como esses. Na falta da vacina, de forma crescente, em moto contínuo, contando com a extrema habilidade logística que temos assistido, muita gente vai se sentir deixada de lado, ludibriada, abandonada… Resultado próprio dos que politizaram muito e trabalharam de menos.
Agora Dória ataca, com sua característica fala biliar, azeda e muitas vezes pouco respeitosa, sua alma gêmea – Bolsonaro. A dupla BolsoDória com sua atuação, por motivos evidentemente focados em disputas políticas futuras, abandona o razoável exigido na colaboração institucional. Uma disputa pública ridícula e mesquinha se instala na condução da vacinação no país.
Não adianta agora o Dória e sua equipe condutora culparem a esperada política de Bolsonaro como a única responsável pela crise maior que se avizinha. Dorianos foram igualmente responsáveis pela construção do preconceituoso discurso extremista conservador. Bolsonaro e Dória esvaziaram a humanidade das palavras e dos gestos de solidariedade ao cultuar a demagogia e a soberba com as quais embalam a ganância pelo poder. Intensifica-se a cobrança e a exigência por governantes que respeitem a população e as regras republicanas.
E agora, José!
Paulo Puccini
Médico sanitarista – doutor em saúde pública.
21/1/2021
Foi em diamantina onde nasceu Jk.
E a princesa leopoldina lá resolveu se casar
Mas chica da silva tinha outros pretendentes
E obrigou a princesa a se casar com Tiradentes
Stanislaw Ponte Preta — Sérgio Porto
Melhor prevenir do que remediar é um antigo provérbio, um senso comum, amplamente presente nos escritos e ensinamentos bíblicos. Refere-se ao caminhar da humanidade na busca da sabedoria para a condução prática da vida cotidiana.
Prevenir melhor que remediar é mais que um proverbio, é um senso comum esclarecido, um saber prático que cria o hábito de decidir bem, aplicável na lida diária, em diferentes campos de atuação. Valoriza o viver cuidadoso, prudente. Reconhece, com realismo e humildade, os limites humanos, para alertar sobre a necessidade da defesa e respeito à vida com a qual fomos agraciados e somos responsáveis…. Por isso, na área da saúde é um consagrado princípio, ao ponto de os Constituintes o terem firmado na Carta:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: […]; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; […]. (Destaque nosso)
A preocupação com a defesa da saúde coletiva, da melhoria da qualidade de vida, a superioridade histórica do prevenir e seu menor custo social conduziram tal inclusão na nossa Constituição.
Não obstante, tem surgido a pregação de outro evangelho: exacerbação do individualismo e pouco caso com a vida social e coletiva. Não há nada mais ridiculamente anticristão e estranho do que certas declarações de crentes batizados, ainda que tal fato tenha ocorrido sob o manto de pastores fariseus, réus capturados nas suas artimanhas financeiras com recursos públicos. Suas ações não têm nada de sagradas, são mundanas, regadas com forte hipocrisia. Apesar da obviedade de ensinamentos acumulados pela experiência prática humana, assim se contrapôs o presidente do Brasil:
“Eu dou minha opinião pessoal: não é mais barato e fácil investir na cura que na vacina? “Eu tomei cloroquina, outros tomaram ivermectina, outros tomaram annita e pelo que tudo indica todo mundo que tomou precocemente uma das três alternativas aí foi curado.”
Interesses dos mais mesquinhos misturam-se com falsas afirmações, confrontando evidências claras sobre a inutilidade de tais drogas para a Covid19, e se somam com a indução de dúvidas sobre futuras vacinas ou sobre a sua obrigatoriedade em atenção à necessidade da vida coletiva, da qual somos todos partícipes. Comemora-se a suspensão do desenvolvimento de uma vacina. Propaga-se a atitude negacionista e antissocial, já conhecida desde antes das eleições de 2018, presente nas afirmações sobre a recusa em aceitar a esfericidade da Terra, na defesa de benécias da tortura e glorificação de seus artífices, sobre o nazismo como movimento de esquerda….
O aparente ridículo de tais posicionamentos perde seu exotismo risível quando se torna a força motriz que captura demagogicamente, das profundezas do obscurantismo anticivilizatório, a justificativa para projetos autoritários, como temos visto.
Frente à inconsistência argumentativa tem restado o recurso à agressividade e violência: defesa de armar a população para resistir ao uso de máscaras ou para se recusar a praticar o distanciamento social, terminando por “patrioticamente” concluir que a saliva não tem efetividade e na pólvora está a última resposta para os dilemas da vida. Como forma de esconder a fragilidade e a insensatez soma-se, então, mais uma das conhecidas expressões conservadoras: o culto ao chauvinismo, um patriotismo elitista e militaresco.
Agora, abandonando às escondidas, sem reconhecer o mal que fizeram florescer, os convivas da nau dos insensatos passam a chamar parte dos parças governantes de extremistas. Um exorcismo patético. Não são inesperados radicalismos. São o pensamento e a prática conservadora difundida em todo o mundo. Deu no que está dando: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, assim é como nossa elite parece se enxergar. São diferenças de estilo e tom na defesa das mesmas coisas: Estado mínimo; privatização como princípio para garantir novos mercados; respeito submisso e religioso a limites do gasto público, para atender as elites na sua voracidade pelos fundos públicos.
É melhor prevenir do que remediar ― prepara-se um novo líder, agora é o garotão televisivo, com seu escudeiro capitão justiça e, para empolgar o empreendedorismo de paulistas, adiciona-se o dirigente do Movimento Cansei, o dondoca de Campos de Jordão, referência inesquecível com a qual o ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, sintetizou nosso atual governante.
Paulo de Tarso Puccini,
médico sanitarista, doutor em saúde pública
São Paulo, novembro de 2020.
Diante de uma epidemia qualquer, sem um tratamento especifico cientificamente apoiado, é natural que a cada dia surja algum técnico (ou um charlatão profissional) afirmando que no caso da prática pessoal dele o uso de uma determinada droga tenha tido um resultado excelente e que, portanto, estaria indicada como um tratamento a ser adotado.
Essa tentação da “eureca” é muito humana. Entretanto, tal conduta cotidiana não tem apoio na metodologia científica, mas sim no senso comum, e aí pode levar a conclusões equivocadas, quando tem a pretensão da generalização.
Conhecemos como é frequente o uso, a glorificação e até mesmo a sacralização de determinados tratamentos que não vão além de comemorar um falso resultado de um tratamento que se obteria, normalmente, pelo curso natural de uma doença. Para identificar o efeito real de uma determinada intervenção sempre é obrigatório comparar pelo menos dois grupos compostos de forma aleatória. Um com a intervenção presente e outro não. No grupo “não tratado” deve-se administrar um tratamento placebo (ou outro já existente e comprovado) para não enviesar os resultados da comparação. Isso é o que se define como um estudo randomizado e controlado. Não havendo tal comparação, adequadamente planejada e em número de pessoas participantes suficientes, não se pode afirmar pelo método científico um novo achado.
Relembro que, mesmo estudos randomizados e controlados podem concluir erradamente, em razão do número insuficiente de casos participantes, os quais não permitem afastar o erro inerente, quando se supõe que a amostra do estudo é de fato representativa da população geral. Ou seja, toda afirmação científica é feita com uma margem de erro que se aceita correr, é o chamado erro alfa de um estudo qualquer. Concluindo: uma afirmação científica para um tratamento para a Covid19, como se espera, dependerá de comparação metódica entre grupos com e sem a intervenção estudada e realizada com número grande e variado de participantes.
Não se desconsidera que na prática profissional se encontram hipóteses que depois possam ser comprovadas. O caso recente da associação entre microcefalia e Zika, por exemplo, foi sugerida por uma médica a partir de alguns casos que ela atendeu em seu consultório e depois verificada cientificamente.
No caso das drogas em moda podemos afirmar: até o presente momento não há nenhum tratamento específico, efetivamente comprovado para a Covid19. Desde o início da epidemia muito se falou da cloroquina e da ivermectina (não consideramos o caso da semente por motivos óbvios), mas nada foi efetivamente comprovado. Ao contrário, no caso da cloroquina, foram comprovados efeitos maléficos quando em uso generalizado e em doses elevadas. Tal é o entendimento presente nos Informes da Sociedade Brasileira de Infectologia (veja o de nº 15 de 30/06/2020) que aborda os tratamentos em estudo.
Então por que insistir e propagandear uma droga inerte para a Covid 19 e produtora de complicações para a saúde das pessoas como a cloroquina? Continuo achando que a melhor explicação ainda é a oferecida por Brás Cubas, de lá do outro lado:
“Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la [..]. Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento, um emplastro anti-hipocondríaco…
Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas […]. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória. Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas…” (Extraído de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas).
A crise no Rio de Janeiro, que tem como centro o relacionamento da administração pública com a Organização Social (OS) IABAS revela, mais uma vez, algo já há muito sabido sobre a estruturação e funcionamento deste tipo de empresa. Diferentemente da parceria pública com entidades filantrópicas conveniadas, as Santas Casas, constitucionalmente prevista para a contratação de serviços complementares ao SUS, a parceria com as Organizações Sociais significa outra coisa: a transferência do poder e da gestão da coisa pública para o privado. Para tal empreitada, a estruturação da parceria com as OS dispõe de controles com base legal vulnerável. É uma natureza de relacionamento apoiada em exagerada discricionariedade, imbricada com interesses que ocupam postos de comando no aparelho de Estado, os quais são os responsáveis por efetuarem o processo de qualificação e contratação das OS. Tal precariedade do processo tem levado a uma relação de conivência entre a autoridade outorgante e o comando das OS, enviesando o contrato de gestão como instrumento de controle e avaliação. A transferência da gestão pública para OS não se trata, portanto, de uma solução que traga respostas satisfatórias aos problemas que atingem a sociedade brasileira em sua relação com o Estado, razão pela qual vem merecendo questionamentos éticos e políticos em relação à elevada discricionariedade do processo, à ruptura da integralidade sistêmica da gestão pública, à fragilização das responsabilidades do Estado na prestação dos serviços, à precarização do trabalho no setor público e à debilidade estrutural dos controles sobre a utilização dos recursos públicos. Assim, destaco algumas mazelas na relação Estado—Organizações Sociais:
Paulo de Tarso Puccini,
médico sanitarista, doutor em saúde pública
26/05/2020
Considerações sobre três afirmações descuidadas e simplificadoras sobre a epidemia do covid19:
Essa expectativa é uma grande ilusão, um discurso inocente e inútil. Na história humana, nenhuma grande questão social foi ou será equacionada sem uma forte politização na sua resolução. Grandes questões pressupõem disputas, negociação, acordos, encaminhamentos coletivos que são objetos e produtos inerentes da ação política. Não há técnica que exista ou resista num limbo da verdade e acima dos diferentes juízos de valor e do debate crítico para se firmar como solução para um problema vivido. Com esse discurso, no caso da Covid19, há, de fato, uma ocultação dos equívocos imensuráveis de posições radicais e minoritárias que têm dificultado o processo de definição das saídas, pela truculência como têm sido defendidas. Há também pomposas apresentações e iniciativas que resvalam no excesso à procura de palco e promoção de grupos políticos. Assim é! Entretanto, o problema são as posições políticas e ideológicas oficiais do governo federal e não o necessário equacionamento da questão no âmbito do debate político. O obscurantismo tem produzido seus frutos, caminhos da confusão, inclusive na capacidade de a sociedade debater e encontrar as melhores alternativas e abandonar sucessivas bobagens defendidas. O problema não é a politização, mas a posição de força de determinados políticos que contaminam a cena democrática e científica com sua verborragia ignorante e agressiva.
De fato essas não são a mesma coisa e não são convergentes. Numa dada situação histórica somos todos obrigados a tomar a decisão da priorização e essa decisão não é neutra. As técnicas de afastamento social fazem a opção pela vida, pelo valor da existência humana, pelo respeito ao próximo, pela solidariedade, e isso não se faz com o olho voltado para o negócio. É uma opção da maioria pela vida de todos, pela coletividade. Nega-se, assim, a pretensa independência e onipotência das respostas do mercado ao submetê-lo ao que é – uma opção de relações humanas, de sociabilidade. Ele não é uma coisa em si, não pode ser independente da realização humana, não é um ente com interesses próprios, apesar da ocupação “militar” que o dinheiro faz do centro das conversas e das relações entre as pessoas, empobrecendo brutalmente a arte de conversar e conviver. Por isso, na atual crise, em especial, é vital se pensar em novas formas econômicas e na presença do Estado para que se garanta a sobrevivência de pessoas e empresas mais vulneráveis. É preciso estar atento ao estrago que a imensa desigualdade social vem produzindo no Brasil. Não se pode retardar, nem ser tímido em relação às medidas necessárias. Não tem propósito e é perigoso ficar debatendo se o isolamento é culpado de recessão ou a melhor maneira de garantir a atividade econômica futura e não adotar com agilidade as medidas necessárias. A suspensão abrupta do isolamento social, como defendido por alguns, seria apenas um ato criminoso.
A doença é uma vivência individual de um desajuste que impede a continuidade regular do viver. A doença considerada como um fenômeno isolado se apresenta de forma semelhante entre indivíduos pobres ou ricos. Um exame diagnóstico de um infectado pelo Covid19, por exemplo, tem um resultado padrão característico da espécie e indiferente ao nível de renda do indivíduo acometido. Essa e outras regularidades da aparência da coisa produz uma conclusão biologista precipitada de identidade absoluta dos processos em diferentes situações. Entretanto, pobres ou ricos não adoecem, não vivem uma doença ou as possibilidades de recuperação da mesma forma. Assim, a perda da consideração da vida social e coletiva como essência da produção da doença, na qual a dinâmica de uma estrutura social produz o fenômeno, leva, por conseguinte, à perda do entendimento do próprio fenômeno. Não se supera o conhecimento da aparência de um fenômeno social, tal qual uma epidemia, quando a tentativa de explicar a coisa em si é desarticulada das suas conexões com o todo, produzindo um pseudoconcreto. A articulação da ocorrência da infecção individual pelo Covid19 com a vida social e coletiva impõe exigências para o comportamento de cada um em respeito aos outros, bem como para a atuação dos profissionais de saúde e da sociedade como um todo, que são convocados a construir a justiça sanitária, a valorizar o SUS e a equidade no uso dos recursos públicos, cuidando da saúde coletiva e das condições para a produção e reprodução de uma vida saudável.
Paulo de Tarso Puccini
Médico sanitarista, doutor em saúde pública
29 de abril de 2020
A carne envilecida
A carne encanecida chama o Diabo e pede-lhe consolo.
O Diabo atende sob as mil formas de êxtase transido.
Volta a carne a sorrir, no vão intento
de sentir outra vez o que era graça
de amar em flor e em fluida beatitude.
Mas os dons infernais são novo agravo
à envilecida carne sem defesa,
e nada se resolve, e o aroma espalha-se
de flores calcinadas e de horror.
Carlos Drumond – Farewell
Um dos brilhantes militares que comandam o governo do Brasil, não me lembro exatamente da sua indefectível patente, afirmou em entrevista pública – notem bem, não foi um comentário incomodado entre colegas de farda – que a imprensa, diante da epidemia, só fala de coisa ruim, é morte, é caixão… Para todos aqueles que têm um mínimo de respeito e compaixão, e se solidarizam com as duras despedidas e o luto de muitas famílias, destacar o sofrimento vivido não é exatamente um excesso, mas um necessário reconhecimento da realidade coletiva, ainda que possa haver exageros. O comandante pretende superar o difícil momento chamando o diabo para glorificar, em êxtase, seu poder, em fluída beatitude. Entretanto, o fato é que as pessoas e a sociedade, frequentemente sem outra defesa efetiva, constrangidas pelos infortúnios, precisam fazer o luto. É uma ilusão a busca do sorriso tolo, tentando afoitamente esconder o aroma, que se espalha, de irresponsável incapacidade para governar o país.
Paulo de Tarso Puccini
23 de abril de 2020
Ontem (15/3/2020), na sequência à sana golpista que une o futuro vazio dos bolsonaristas, seus militantes organizaram atos públicos, dando de ombros para a sociedade e negligenciando com os compromissos obrigatórios de cada um com a coletividade e com o respeito ao estado de direito.
Tal atitude me fez relembrar de uma antiga polêmica, do início do século passado, na era do cólera, que já deveríamos todos ter aprendido, a começar daquele que preside o país, a respeito das responsabilidades sanitárias de todos com o coletivo social e que o Estado está obrigado a executar e fazer cumprir:
(Sebastião Barroso, 1919, in Hochman G. – A era do saneamento)
O meu vizinho adoeceu por vontade própria; foi a um laboratório e injetou-se uma cultura viva de bacilos coléricos. Se ele se houvesse simplesmente atirado do telhado à rua ou arrebentado os miolos com uma bala ou ingerido uma grama de estricnina, isso só afetaria a sua pessoa e eu tinha que limitar-me a lamentar a ocorrência. Com os bacilos do cólera o caso muda de figura – eles se vão difundir aos milhões pelos objetos que terei que tocar, pelos encanamentos da água que terei de beber, pelos esgotos que vão passar por minha casa. E terei que resignar-me, pois as medidas ao meu alcance isolado seriam improfícuas, visto ascenderem a tal importância e complexidade, que só o Estado as poderia executar…
O governo e alas de seus apoiadores preparam-se para levar às ruas uma manifestação em defesa do governo.
Quem são eles, por que mesmo ali dentro de um barco, cada vez de menor calado, conhecidos insensatos não se entendem, nem sobre qual o mote do movimento?
Tratar-se-ia de uma resposta, segundo se afirma, “agora democrática”, aos inúteis e ingênuos, que se mobilizaram contra as barbaridades e o besteirol geral pregado pelo governo, em especial, na área da educação.
Falar em alas governistas é de fato superestimar o componente propositivo desse grupo. Ele não tem repertório muito além de debater intensamente a direção do tiro. Para onde apontar o cano da arma, quiçá um fuzil novinho.
Não se propõe a apontar questões objetivas para a melhoria e superação dos impasses na educação, mas de forma imponente mirar numa aversão geral ao congresso, judiciário, universidades, jovens, ou seja, tudo aquilo que não reza a cartilha (melhor dizer, não segue os inspiradores versículos da sua rede social).
Um capitão mito, recentemente identificado como enviado pelo divino, excita crescente estupidez e ignorância de conservadores presos ao medo do futuro, ao asco da reflexão, ao pavor diante das mudanças socioculturais, da ciência, do conhecimento. Só lhes resta ameaçar dar tiro, agredir e cultuar o obscurantismo. Essas são características com as quais esse grupo mambembe, capitulado diante da vida, continuará defendendo o fúnebre e sobre as quais nunca haverá acordo interno, pois o vazio é que os preenche e sobre o nada se digladiarão até a exaustão, até restar uma triste ruína abandonada na história. Independentemente do tamanho das mobilizações programadas, a história já codificou a sua dimensão e a marcha da sua falência.
No curso dessa decadência, da revelação do nada, do vazio demagógico, não é exagerada a atenção que a sociedade civilizada terá que ter contra a pregação da ruptura golpista ou insidiosa do estado de direito.